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Segunda-Feira, 22 de Julho de 2024
POR: Equipe Valle
Banho frio, celas e camas de ferro: Conheça a história das ruínas de um dos maiores hospitais psiquiátricos do Centro-Oeste
utilidade pública

Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho foi construído em 1954 e demolido em 1997. Unidade chegou a abrigar 800 pacientes ao mesmo tempo.

 

“O cheiro era muito ruim, e as pessoas viam você como totalmente diferente porque era de lá”.

 

É assim que Sebastião Vieira recorda o período em que esteve internado no Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, inaugurado no ano de 1954 em Goiânia. A unidade, que funcionou por mais de quatro décadas, foi desativada em 1996 e, no ano seguinte, teve a estrutura demolida, deixando apenas as ruínas dos muros como memória de tudo que aconteceu. Hoje, no local, funciona o Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer).

 

“Você era excluído da sociedade porque vinha de lá. Você era considerado um abandonado pela família. Lá tinha a sala de eletrochoque, a jaula, o local onde você fazia os exames, o lugar onde você tomava o remédio e o refeitório. Era realmente um manicômio”.

 

O ex-paciente conta que foi internado na unidade por volta de 1988, onde permaneceu por cerca de um ano para tratar esquizofrenia. Décadas após essa experiência, Sebastião ainda carrega lembranças vívidas do que presenciou durante o período de internação. “Em um dia normal, você levantava cedo, tomava um banho frio, saía para tomar banho de sol e, depois, voltava para dentro do Adauto. As camas eram de ferro ou, às vezes, você dormia no chão. A única atividade era o banho de sol”, afirmou.

 

Ao relembrar os outros pacientes com quem compartilhou os dias de internação, Sebastião Vieira afirma que via um cenário de completo abandono, com gente colocada lá por diversas razões — como esquizofrenia, transtorno bipolar, alcoolismo e, algumas, sem um diagnóstico claro. À noite, segundo ele, ouvia-se muitos gritos e choros. “Tinham muitas pessoas negras e com poder aquisitivo baixo", contou.

 

"Havia pessoas que estavam lá abandonadas pela família, que não tinham a quem recorrer. Que não possuíam documentação ou qualquer tipo de identificação”, completou Sebastião Vieira.

 

Sebastião conta que, durante sua internação, foi submetido a tratamentos com injeções, medicamentos em comprimidos e até eletrochoque sem anestesia. "Se você ficasse mais bonzinho, era tratado melhor. Se ficasse agressivo, apanhava, como eu apanhei muito também”, lembrou.

 

“Depósito de gente”

Pacientes no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

Pacientes no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

 

Ao g1, o psiquiatra Abrão da Silva, que foi diretor do Hospital Adauto Botelho de 1983 a 1987, afirmou que a unidade, quando inaugurada, era a maior do Centro-Oeste. Somente de área construída, o hospital tinha cerca de 7 mil metros quadrados.

 

Segundo o psiquiatra, mais de 800 pessoas chegaram a dividir o espaço ao mesmo tempo. “Pacientes vindos de outros estados foram encaminhados para lá. Por ser um hospital grande, as famílias abandonavam os pacientes. Então, o paciente acabava confinado e abandonado”, contou.

 

Abrão da Silva relata que, ao assumir a gestão do hospital, encontrou uma cena de “horror” e um verdadeiro “depósito de gente”, com algumas pessoas internadas por mais de duas décadas. Muitos pacientes não tinham identificação nem contato com a família.

 

“Havia pacientes que a polícia encontrava na rua e deixava lá. Não havia informação nenhuma. Era uma coisa absurda. O paciente passava meses sem tomar banho e andava nu. Não tem jeito de descrever o horror que era. Era algo terrível e muito difícil”, relembrou.

 

O psiquiatra contou ainda que enfrentou grandes desafios para mudar o cenário do hospital quando foi diretor, como a dificuldade em conseguir verba para implantar políticas de tratamento mais eficazes e a própria percepção de “loucura” que a sociedade tinha na época. Apesar disso, Abrão afirmou que, com ampla ajuda e esforço, conseguiu avançar em algumas conquistas: melhorar a estrutura, obter medicamentos adequados, enviar um grande número de pacientes de volta para casa e acabar com as celas fortes.

 

As "celas fortes" eram salas fechadas com portas de material reforçado onde se colocavam os pacientes mais agitados. Apesar de hoje serem proibidas em unidades psiquiátricas, a presença delas era muito comum nos hospitais da época do Adauto Botelho.

Camas no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

Camas no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

 

O psiquiatra ainda explica que, devido à falta de recursos, muitas vezes o eletrochoque precisava ser aplicado sem anestesia. "O paciente recebia a descarga e ficava inconsciente imediatamente. Qualquer pessoa que assistisse à cena ficava aterrorizada, pois o paciente tinha uma crise convulsiva após o procedimento. No final da gestão, conseguimos recursos para adquirir o anestésico", afirmou.

 

“A cultura da época acreditava que a doença mental não tinha salvação, nem solução”, contou o psiquiatra. Mas, para ele, ainda hoje a psiquiatria fica em segundo plano, sobretudo quando se trata de investimentos públicos, o que dificulta a implementação de políticas em saúde mental.

 

“Manicômios, nunca mais”

Sebastião Vieira, ex-paciente do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Thauany Melo/g1

Sebastião Vieira, ex-paciente do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Thauany Melo/g1

 

Hoje, o ex-paciente Sebastião Vieira faz tratamentos com medicamentos e em unidades dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um modelo que, segundo ele, é fundamental para sua saúde. “O atendimento no CAPS é totalmente diferente e muito melhor para o paciente, pois é um tratamento mais humanizado”, afirmou.

 

Para ele, a “liberdade sem manicômio” foi um marco para que aprendesse a lidar com a sua saúde mental. Juntamente com a medicação adequada, atividades como nadar, expressões corporais e pintura ajudaram-no a conviver com a esquizofrenia. “É muito importante ter um tratamento com mais liberdade. Só de poder estar todos os dias com sua família e não ter aquele confinamento, trancado em um ambiente fechado, você melhora muito mais. O tratamento psiquiátrico não se resume apenas ao uso de medicamentos, é necessário muito mais”, afirmou.

 

Aos 62 anos, Sebastião Vieira participa da Comissão de Saúde Mental no Conselho Municipal de Saúde e luta por políticas públicas efetivas para que outras pessoas com transtornos psiquiátricos tenham acesso a tratamentos dignos e adequados. Para ele, desde sua internação no Hospital Adauto Botelho, muitas conquistas foram alcançadas, no entanto, ainda há muito a conquistar em relação aos preconceitos, investimentos financeiros em saúde mental e à compreensão do que as doenças psiquiátricas representam.
 

“Tomara que isso não volte nunca mais. Manicômios, nunca mais. Liberdade, sim, manicômio não”, concluiu Sebastião Vieira.

 

"Para que não se esqueça"

Ruínas do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho que, atualmente, estão no Crer, em Goiânia (2024) — Foto: Thauany Melo/g1

Ruínas do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho que, atualmente, estão no Crer, em Goiânia (2024) — Foto: Thauany Melo/g1

 

O fotógrafo Kim-Ir-Sen Leal, que passou 13 dias no Hospital Adauto Botelho para produzir o documentário “Passageiros da Segunda Classe”, destacou a importância de preservar a memória do que esse tipo de unidade representou - seja pela estrutura, por fotografias, filmagens ou pesquisa.

 

“Você tem que preservar o espaço para dizer: isso aconteceu, isso existiu, aqui está a prova viva disso. Essa realidade existiu, e tomara que nunca mais exista”, afirmou Kim-Ir-Sen.

 

Do hospital, Kim-Ir-Sen se recorda da estrutura precária, dos gritos dos pacientes e das cantorias. Segundo o fotógrafo, o que viu durante os dias em que gravou o documentário foi a imagem do descaso com pacientes e com o próprio hospital, repleto de “muros quebrados”, “coisas jogadas” e falta de supervisão.

Pacientes no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

Pacientes no Hospital Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Kim-Ir-Sen Leal/Arquivo pessoal

 

No documentário, o fotógrafo afirmou que deu destaque aos cantos que se fazia presente nas vozes dos pacientes.

 

“Me encantavam as pessoas que não conseguiam balbuciar nenhuma palavra ou falar direito. Quando eles cantavam, cantavam lindamente”, relembrou.

 

Ao se lembrar das inúmeras conversas com os pacientes, Kim-Ir-Sen diz que muitos estavam internados por questões que iam além do estado mental — famílias internavam pessoas para “se livrar” de um problema, maridos queriam manter as esposas longe para terem outros relacionamentos, ou parentes que brigavam por herança encontravam na internação de um ente a solução. Mas havia um denominador comum: a maioria sonhava o tempo todo com a liberdade.

 

“Eles diziam ‘eu gostaria de ter meu cafezinho quentinho, acordar, fazer meu cafezinho, fazer minha comidinha, botar uma roupa bonita à noite, ir na praça’. Isso era o tempo todo”, contou o fotógrafo.

 

Da construção à demolição

Imagem Abrão da Silva/Arquivo pessoal

Imagem Cristina Cabral/O Popular

Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho foi construído em 1954 e demolido em 1997 - arraste para o lado para ver o antes e depois. — Foto 1: Abrão da Silva/Arquivo pessoal — Foto 2: Cristina Cabral/O Popular

 

O historiador Éder de Paula explica que o Hospital Adauto Botelho foi inaugurado em 1954, ainda com a estrutura incompleta. O nome do hospital foi uma homenagem ao médico Adauto Botelho, que liderava o “Serviço Nacional de Doenças Mentais” da época e estava à frente da criação de diversas unidades similares pelo país.

 

Para o historiador, a construção do hospital foi emblemática porque coincidiu com “o batismo cultural” de Goiânia como nova capital, o que estava atrelado a uma ideia de higienismo - na qual havia o desejo de "limpar" a sociedade de comportamentos e características consideradas indesejáveis.

 

“Houve o desejo dessa cidade de representar um ideal de modernidade, que se pensava estar atrelado a um aspecto de organização social. Estabeleciam-se comportamentos aceitos para uma capital moderna, que refletia um estado com comportamentos específicos, onde os indivíduos se comportavam de determinada maneira”, explicou.

 

A inauguração, segundo o historiador, foi muito comemorada pelas autoridades, que trouxeram comitivas, fizeram missas e discursos.

Parte do complexo do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Abrão da Silva/Arquivo pessoal

Parte do complexo do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em Goiânia — Foto: Abrão da Silva/Arquivo pessoal

 

Éder de Paula explica que, durante a década de 1980, denúncias levaram à elaboração, em âmbito nacional, do Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, que resultou na lei 10.216, de 2001, conhecida como "Lei Antimanicomial" ou "Lei da Reforma Psiquiátrica". No entanto, antes disso, desde os anos 1990, foram propostas algumas mudanças com o objetivo de transformar o Hospital Adauto Botelho.

 

“O Adauto, antes da Lei Antimanicomial, já começava a receber uma série de críticas. O movimento de saúde mental já começava a fazer uma série de reivindicações. Já em 1995, havia um movimento forte pedindo mudanças, como a eliminação das celas e das grades, e permitindo que os pacientes circulassem mais livremente dentro daquele espaço de exclusão”, explicou o historiador.

 

Éder de Paula afirma que os movimentos antimanicomiais desempenharam um grande papel no fechamento da unidade na forma como ela funcionava. Mas, a demolição da estrutura, foi palco de muitas polêmicas e disputas. Em 1997, o Fórum Goiano de Saúde Mental tentou evitar que o hospital fosse derrubado, numa tentativa de preservar a memória, ainda que dolorosa, do que ele representou. A tentativa, no entanto, não teve sucesso e o hospital foi demolido.

Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho quando começou a ser demolido — Foto: Cristina Cabral/O Popular

Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho quando começou a ser demolido — Foto: Cristina Cabral/O Popular

 

Em 2002, cinco anos após a destruição da estrutura do hospital, o governo estadual colocou uma placa nas ruínas do Hospital Adauto Botelho, com uma mensagem que diz que o intuito de manter o muro é homenagear pacientes e funcionários que passaram por ali.

 

Para o historiador, no entanto, a demolição da estrutura resultou em um processo de esquecimento, levando ao desaparecimento dos registros e da memória de quem passou por ali — uma vez que, quem passa e olha os restos de muros por detrás das grades do Crer, em sua maioria, não conhece a trajetória do hospital ou das pessoas marcadas pela experiência de internação no lugar.